Era 04:37 da manhã, uma segunda-feira de feriado, quando
o despertador tocou. A luz do quarto já estava acesa há sete minutos e Ananda
se preparava para iniciar a jornada. Gostava de caminhar pelas ruas vazias e
com a cidade ainda em silêncio, gostava de sentir o frio, na verdade, era um
tipo de pessoa que independente da temperatura e do horário do dia costumava
sentir frio; não importava se seu corpo estava extremamente abrigado pelo fino
e requintado tecido e se fazia o intenso calor costumeiro dos dias de verão,
era comum sentir frio em toda extensão do corpo.
Não se incomodava em estar sozinho em fragmentos do
dia, às vezes, parecia estar feliz com o abandono. Todavia, os momentos em que
não estava sozinho sempre estava rodeado de pessoas que lhe saudavam,
cumprimentavam. As pessoas do convívio cotidiano chegavam a se posicionarem de
modo a receber seus regulares acenos e sorrisos cordiais. Era um doce de alma,
de uma nobreza sem igual.
Seu comportamento era uma incógnita para as pessoas,
não sabiam de onde emanava tanta delicadeza e suavidade. Seu passado era pouco
conhecido e quando alguém ousava perguntar algo recebia como resposta:
- Sempre tive uma vida extraordinária!
A resposta, acompanhada de um largo sorriso doce,
impedia que o interlocutor prosseguisse com o faro investigativo. E quando
insistiam nas perguntas, em saber onde nasceu, onde estudou, como fora a
educação doméstica, ouviam:
- Não importa se a vida é árdua ou agradável e sim
qual a postura que assumimos diante da experiência vivida.
Tergiversava sempre e o enigma continuava, contudo
não era alguém taciturno era falante e extrovertido. Quando andava pelas ruas,
a atenção estava nas necessidades alheias, qualquer ação no sentido de ajudar
os outros não era medido esforços. Comportamento que se verificava nos trabalhos voluntários; na escola do bairro auxiliando crianças com deficiência em leitura,
na distribuição de sopa as quartas e sábados, no trabalho na paróquia, na
arrecadação de alimentos da rádio comunitária da cidade...
No Natal daquele ano, a igreja estava lotada, havia tanta
gente que a igreja perigava transbordar, o sacerdote que celebrava a missa era
o Bispo, e, antes da benção final, o mesmo falou aos fiéis que gostaria de
convidar alguém por quem ele nutria grande carinho e admiração para deixar uma
mensagem de paz aos presentes. Seria uma manifestação simbólica do valor
daquela amizade. Então, o Bispo falou:
- Ananda, por favor, venha até aqui. E quando se
aproximou do altar o sacerdote lhe estendeu as mãos, deu-lhe um forte e enérgico
abraço e refazendo o pedido para emitir uma mensagem entregou o microfone.
Ananda olhou fixo nos olhos do sacerdote e disse o quanto se sentia feliz em
receber aquele convite e se voltando para a nave da igreja falou:
- Permitam-me não falar diretamente do Natal e sim de
mim, porém sem perder a essência da mensagem a ser dirigida a todos vocês. O Natal era uma das épocas que eu menos gostava. Além de ser um período
de muito frio, era a época do ano que eu mais me sentia sozinho. Vocês não
devem imaginar o quanto é triste ser sozinho e abandonado, aqui não me refiro
apenas ao sentimento e sim as circunstâncias reais, pior, essa situação se agrava se
essa solidão e abandono se apresenta a nós durante a infância.
O público presente silencia e petrifica os olhares e
atenção, pois muitos ali conheciam a pessoa que ora emitia o testemunho.
- Eu era órfão, entenda esse conceito na esfera mais
abissal possível, pois não tinha pais nem qualquer familiar que servisse de referência
e socorro. As razões de desconhecer como o isolamento se abateu sobre mim,
reside no fato de desde tenra idade ter como lar o mundo e como telhado o
grande céu azul. Questionava por que Deus permitia que houvesse órfãos no mundo
e somente muitos depois cheguei a uma ideia, que ainda permanece inconclusa, a saber, que os órfãos
existiam para fomentar nas pessoas o desejo lhes servirem como pais e mães.
As pessoas assustadas com tal relato não conseguiam
imaginar que aquela pessoa próspera, de imagem moral e integridade inquebrantável,
pessoa sempre gentil, tivera infância tão difícil.
- Dentro de mim um desejo incondicional gritava para
que Deus não permitisse que morresse de frio, fome, vício ou falta de amor.
Hoje me convenço que quem estende a mão a uma pessoa abandonada [sozinha, sem
esperanças, em depressão...] é agradável aos olhos de Deus, porque compreendeu
bem sua missão genuína e pratica a Lei maior; na minha vida esse alguém foi o
Bispo Arhata. Todavia não pensem vocês, que o fato de andar por aí irradiando alegria,
acolhimento, gentileza é apenas uma retribuição ao abraço que a vida me deu. Na
verdade, Arhata me fez enxergar que as pessoas que socorremos na vida podem nos
ter sido caras em outra existência espiritual, quiçá não nos sejam em momento
mais adiante.
As pessoas começaram a se entreolharem e alguns
começavam a estabelecer conversas rápidas entre si, especulando, agora entendo porque nunca
falava do passado! Agora entendo porque isso... porque aquela situação...
porque, porque, porquês.
- Imaginem vocês se as pessoas que se encontram em
posição de necessidade e que nós ajudamos fossem nossos credores em situações
passadas ou futuras e pudessem nos fazer lembrar da dívida que possuímos para com eles; estou certo que não haveria caridade no gesto e sim a paga por algo antigo ou adiantado em nosso favor.
Partindo da mesma premissa, toda pessoa necessitada deve ser vista como um
irmão, um amigo, alguém que tem um direito divino a nossa caridade. Agora,
atenção, não me refiro à caridade que fere mais que ferro em brasa, que causa
cicatrizes no coração, que queima a mão de quem as recebe, aquelas que
certamente recusaríamos não fosse a hospitalidade da mais extrema necessidade
da doença e privações que se abatem sobre nossas vidas.
- A dar com a
mão e não com o coração, melhor que fôssemos iguais espinhos ou limão, que jamais
negam sua natureza. Não espere que um limão seja doce apenas para te agradar,
na mesma toada, não espere que um espinho lhe faça carícias, ele sempre vai lhe
oferecer a dor como gesto de acolhimento. A dar com uma mão, enquanto a outra
busca compensação ou apontar o gesto de nobreza como quem deseja ser notado, antes
não o faça.
- Doação se faz com aquilo que para nós é valioso,
caridade é dar não o que sobra, mas aquilo de que necessitamos. E não julguem
que a caridade só se faz com bens materiais, existem coisas mais valiosas, uma
palavra, um gesto, um sorriso que nos irradia, um instante de atenção, manifestações de que o outro tem valor e importância para nós.
Finalizou com um silêncio que lhe conduzia a época onde
dormia nas ruas e comia as sobras que encontrava, a época onde o convite era
para desistir, dos pensamentos de abandono. Após o silencio olhou a plateia e
disse:
- A vida me expôs a vivê-la e senti-la intensamente,
o frio me fez entender o valor do agasalho, a fome me fez entender o fim último
dos alimentos, a solidão me proporcionou um encontro e amizade comigo, de modo
que jamais me sinto sozinho, e o olhar constante para o céu me fez perceber que
nada é para sempre. Por conseguinte, aproveitem os momentos, os instantes, sejam eles bons
ou ruins, pois a única certeza é que eles irão passar.
Passou o microfone ao amigo, abraçou-o longamente e
desceu do púlpito. Todos continuavam em silêncio, quando o Bispo lhes dirigiu a
palavra dizendo que fossem em paz e que Deus vos acompanhassem.
José Ailton Santos - Licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe, Pós Graduado pela Faculdade Pio X em História do Brasil, Graduando do curso de Administração de Empresas pela UNIT, ex-professor efetivo da rede estadual de ensino do estado de Sergipe, funcionário efetivo do Banco do Estado de Sergipe com certificação pela ANBIMA, blogueiro, poeta de ocasião e portador da SPNDLR [Síndrome Patológica de Necessidade Diária de Leitura e Reflexão].