sexta-feira, 16 de novembro de 2012

SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO: UM CASO DE DESUMANIZAÇÃO DO ATO DE PUNIR




Mesmo sem perder o otimismo [para não usar esperança], cada dia mais estou convencido que a democracia, em significado amplo da palavra, caminha de forma muito lenta em nosso país. E, em alguns casos, diria que esse caminhar lento, muito lento, comporta até mesmo certo retrocesso, ou seja, um passo à frente e dois para trás. Regra geral, a sensação é a de que nunca chegaremos a lugar nenhum.

Todos os dias assisto nos noticiários [salvo nos da Rede Globo, menos por razões pessoais do que pelo cansaço do modelo jornalístico; prefiro e recomendo o jornal da TV Cultura] cenas que impressionam pela ausência de cidadania. E, de pronto, recordo do livro do sociólogo brasileiro Gilberto Dimenstein, O cidadão de papel. Não lembro quando fiz essa leitura, penso que foi no ano de 2005, e como não disponho do mesmo para consulta detalhada, farei uma menção breve da proposta do livro, que possui como intento mostrar que milhões de brasileiros possuem uma cidadania de papel, isto é, só existem de fato e de direito no papel, pois a realidade se resume a casos graves de desrespeitos aos direitos humanos: violência, analfabetismo, mortalidade infantil, desnutrição, desemprego, concentração de renda, falta de habitação e de saneamento básico, discriminação, desassistência na saúde pública... e a lista não tem fim.



Um dos exemplos gritantes de desrespeito aos direitos humanos no Brasil é o sistema responsável pela aplicação do castigo e da recuperação dos apenados, a saber, os presídios brasileiros. Certamente, os leitores deste texto [suponho ser um número ínfimo] já leram ou ouviram falar do livro Vigiar e Punir, de Michel Foucault, e se ainda não leu nem ouviu falar, fica a dica de leitura. No início do livro, Foucault descreve com riqueza de detalhes uma das formas de punição comum em tempos remotos, onde o condenado tinha cada um dos seus membros [braços e pernas] amarrados a um cavalo e esses eram estimulados a esticar a corda de forma lenta e gradual, até o esquartejamento completo, em um espetáculo público de dor física extrema. Essa prática era usada como forma de impedir e desestimular nas pessoas a prática de novas infrações, porém o grande problema era que novos casos continuaram ocorrendo, apesar da bárbara condenação a qual eram submetidos.



Retrocedendo ainda mais no tempo, vamos perceber que na história do direito penal a pena estava associada a uma ação vingativa, ou seja, de retribuição. Daí se concluir que a pena não passava de uma vingança privada. Todavia, com os passar do tempo foi atribuído ao Estado o direito de aplicar e executar as penas, retirando das pessoas a possibilidade dessas exterminarem famílias inteiras como forma de compensar um crime. E o caráter antes individual tornou-se coletivo, com a condenação executada pelo Estado.

Entre os séculos XVIII e XIX alguns juristas italianos, que influenciaram fortemente nossa legislação atual, travaram uma discussão sobre quem deveria ser punido se o sujeito ou o delito. Entre esses pensadores destaco Ferri e Beccaria. O primeiro defendia que não se deveria punir o crime e sim o homem, ou melhor, punia-se o indivíduo que representasse um perigo para os demais indivíduos e não a infração. Inclusive, foi o próprio Ferri que em fins do século XIX defendeu que ao invés de punir os sujeitos nas prisões se aplicassem aos delinquentes substitutivos penais, essa era a expressão usada por ele na época. Já o segundo, Cesare Beccaria, talvez, seja o pensador que mais influenciou os operadores do direito penal moderno, pois este ao publicar, em 1764, seu livro Dos delitos e das Penas defendeu penas fixas, necessárias e que fossem proporcionais aos delitos praticados. Esse autor também considerava uma imoralidade, ilegitimidade e uma atrocidade de grande proporção a aplicação da pena capital, a pena de morte, pois considerava-a inútil e desnecessária a qualquer tipo de sociedade. Perceba que a discussão a cerca do tema não é tão recente como pensam alguns, então fica aí o recado aos defensores da pena de morte no Brasil.



Atualmente, em nosso pais, o modelo punitivo se resume no enjaulamento dos infratores em grandes construções denominadas de casas de detenção e custódia e que requer uma soma vultosa de recursos financeiros para manter toda essa estrutura funcionando, ainda que da forma caótica como está. A população carcerária brasileira é a quarta maior do mundo [perde para EUA, China e Rússia] e totaliza um número de aproximadamente 500. 000 [meio milhão, quase a população de Aracaju, capital de Sergipe, enjaulada] e um déficit de vagas de quase 200.000 [duzentos mil, um quinto de milhão] é muita mão-de-obra improdutiva, dali poderiam sair excelentes professores, advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, grandes cientistas, dentre tantos outros profissionais. No entanto, encontram-se sem poder exercer seus talentos, desperdício de recursos humanos e financeiros que poderiam ser melhor empregado.

Todos os estudos e esforços no mundo – ao menos na parte mais humana e civilizada dele – é pelo fim das prisões ou para encontrar um substitutivo que altere o formato atual de enclausuramento dos presos. Penso e acredito [com base no conhecimento que acumulo sobre o assunto até o momento], que a pena alternativa a substituir o modelo vigente deve fundamentalmente ter como amparo legal o ressarcimento: seja indenização, reparação ou compensação do dano, ocasionado pelo crime ou criminoso. Talvez, esse seja o aspecto mais importante e sobre o qual se debruça o direito penal contemporâneo.

Penso que toda proposta que se afaste da questão anterior é pura falácia e, quase sempre, com fins politico-eleitoreiro, como é o caso dos defensores da pena de morte no nosso país, que buscam apenas agradar uma fatia da sociedade que ainda não conseguiu se livrar totalmente dos resquícios do sentimento de vingança.



Mas, há também aqueles que defendem a ideia que a crescente criminalidade no Brasil é fruto da impunidade, aliás, essa é uma verdade cada dia mais aceita socialmente, chega a soar quase como um dogma, inquestionável. Porém, acredito que o aumento da criminalidade independente de onde ocorra, em Cedro de São João, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, a razão é sempre a mesma. Resulta da miséria social em suas várias faces, pois não podemos associar o crime motivado por razões individuais, quase sempre ligadas a desequilíbrios psíquicos, com os imperativos sociais excludentes, que limita a participação e a própria sobrevivência das pessoas em sociedade.



Convido os leitores desse blog [os quais suponho ser um número ínfimo] a pensarem comigo, será que um pai desejaria que seu filho vivesse nas ruas sem o mínimo de conforto? Será que alguém optaria de livre escolha, viver embaixo de pontes e viadutos? Será que alguém que goza das suas faculdades mentais em perfeito equilíbrio trocaria uma refeição caseira por uma adquirida a partir das sobras encontradas em lixos residências? Suponho que você não morreria de fome sabendo que na casa do vizinho há o suficiente para alimentar a família dele, sua fome e a de tantos outros. Certamente, entraria na residência alheia e, se encontrasse resistência, roubaria e/ou mataria para não morrer de fome. Aí reside uma das raízes da árvore da criminalidade.

Por conseguinte, por que não se tentar evitar atenuar a prática de delitos através de um esforço de melhoria das condições básicas de vida do povo. Condições essas, aliás, asseguradas pela carta constitucional brasileira de 1988. Se todos tivessem [não me refiro a vaidades e luxos, mas ao básico] moradia, trabalho, alimentação, educação, transporte público, acesso ao tratamento de doenças, previdência, entre outros. Falo de condições mínimas para que a pessoa leve uma vida digna e deixe de ser o cidadão de papel da obra de Dimenstein mencionado no início do texto.



Estou certo que a partir do momento em que as pessoas tiverem condições razoáveis de vida a criminalidade, sem dúvida, diminuirá. Aqui, não defendo o fim do crime, afinal de contas, crimes ocorrem em todo o mundo, até mesmo nos países mais desenvolvidos, onde as condições de vida são superiores as condições mínimas propostas anteriormente.  Agora, é óbvio que as ocorrências nesses países não chegam nem perto da situação vivida atualmente em nosso país, que se encontra numa total desorganização.

  
Como imaginar um país onde a distribuição de renda é tão injusta e não há, em curto prazo, como corrigi-la, onde pessoas moram em mansões astronômicas, são detentoras de grandes fortunas e, ao lado, quase vizinhos, vivem mais de 50 milhões [um quarto da população nacional] de miseráveis [pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza]. O que esperar de uma nação onde há miséria, fome e ausência de renda, que somados representam combustível suficiente para fazer aumentar a criminalidade. Mas essa equação já é do conhecimento de muitos, não trago nenhuma novidade. Apenas não acredito que a solução esteja na aplicação de penas mais duras, na reforma do código penal ou na ampliação de presídios para enjaular os delinquentes esfomeados e os cidadãos de papel.



Recentemente, um sociólogo entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, declarou que o governo gasta R$ 1.800,00 [um mil e oitocentos reais, quase três salários mínimos] mensais para manter um detento, média nacional. Contudo, esse valor é referente aos presos comuns, pois os considerados perigosos custam em média R$ 6.800,00 [seis mil e oitocentos reais, o equivalente a dez salários mínimos e meio] e ainda há um número de presos considerados de alta periculosidade e complexidade, a exemplo de Luiz Fernando da Costa, Fernandinho Beira Mar, líder da organização criminosa Comando Vermelho, e Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido pela alcunha de Marcola, chefe da organização criminosa PCC [Primeiro Comando da Capital]. Esses somam um número próximo de mil em todo o país e custam para a nação uma quantia difícil de calcular, pois envolvem gastos com aeronaves para deslocar esses de um presídio ao outro para as audiências, vários agentes federais para garantir a integridade e que não sejam alvo de tentativas organizadas de fuga.

Então, vejamos, se fizermos uma conta rápida vamos notar que um pai e dois filho que se encontrem presos representam uma despesa da ordem de R$ 5.400,00 [cinco mil e quatrocentos reais, o equivalente a mais de oito salários mínimos] para o governo federal. Enquanto isso, um cidadão comum recebe como remuneração trabalhando 08 horas por dia e 30 dias por mês o equivalente a R$ 645, 00 [seiscentos e quarenta e cinco reais]. Qual a lógica dessa fórmula, onde se remunera melhor aqueles que cometem delitos em detrimento do indivíduo pacato. Pergunto, até quando vamos reproduzir esse modelo falido? Com a palavra o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, que há poucos dias declarou em entrevista que se tivesse que cumprir pena em um presídio brasileiro, preferia morrer. Sem comentários!



Se imagine dormindo com a cabeça encostada em um vazo sanitário onde mais de cinquenta pessoas usaram ao longo do dia e não recebeu nenhuma higienização? Se imagine tendo que se revezar para dormir no chão sem colchão ou cobertor? Acrescente a isso as noites frias do inverno ou as noites escaldantes de um verão intenso? Se imagine tendo que fazer suas necessidades fisiológicas à vista desses mais de cinquenta homens? Se imagine sendo agredido por muitos em uma cela? Se imagine sendo esfaqueado numa cela por motivo de rixa entre gangues sem você ter nada a ver com a querela? Se imagine... chega! Chega! Agora, se imagine solto, caso sobreviva, como superar os sofrimentos físicos e psíquicos e ainda manter vivo o patriotismo?



A solução para resolver a crescente criminalidade no Brasil e a tragédia humana encarnada no sistema prisional do país não passa unicamente pela contratação de mais policiais, pelo investimento em tecnologia para o setor, tão pouco, pela implantação de uma legislação mais rigorosa. Não que esse tipo de investimento seja desnecessário, mas pelo fato das razões geradoras exigirem outras medidas governamentais, que inclusive, foram apontadas no corpo do texto. Manter uma população de quase um milhão de pessoas, excluída dos benefícios proporcionados pela vida em sociedade, afastados da participação social e impedidos de trabalharem para o crescimento do país, é antes de tudo um desperdício de capital humano e financeiro. E caso continue dessa forma por mais tempo, nunca haverá, conforme mencionado no primeiro paragrafo, uma democracia, no sentido e significado que a palavra representa, com tantos impedidos de participarem.  

2 comentários:

  1. Excelente texto camarada: robusto, consistente, preciso e provocador, qualidades que reforçam meus hábitos de leitura e me faz ser vigilante em meus comentários neste espaço. Como de costume em minhas andanças, por este complexo e não menos vasto universo do conhecimento, se faz indispensável incluir como roteiro obrigatório a inclusão deste blog, que, como dizia Giordano Bruno é de fato multi-pluricultural. Camarada a ausência de oportunidades, de políticas públicas de inclusão e o aumento indiscriminado da violência, em sua grande maioria esta atrelada a ausência do estado, da família, da escola, da igreja, ou seja, dos aparelhos ideológicos, que acabam levando os jovens ao submundo do crime, das drogas e da violência. É a não inserção social, o não acesso aos bens produzidos pela sociedade, os grandes causadores da transgressão. Como consequência surge este aumento indiscriminado do envolvimento dos jovens com o mundo das drogas, o que nos fornece como fruto, a violência materializada em varias modalidades de crimes, tudo em detrimento de uma política elaborada por parte dos afortunados, que exploram , lucra e enriquece com a desordem social. Estes malabaristas criam empresas que prestam assistência em todas as áreas, inclusive, nas que mais sofrem com o resultado desta política negativa do enfrentamento e da ação destes delinquentes infratores, não adianta criar mecanismos de controle ou política de enfrentamento do tipo: chega, entra, bate, atira, mata e sai; o caso é bem mais complexo, observem que a política de prevenção já não constitui a saída, os gastos com medidas preventivas são elevadíssimos, mas isto, não vem ao caso, quanto mais gastos melhor para os afortunados. É inaceitável esta barbárie, onde os “pobres” (menos abastados) não consegue encontrar a alegria de viver. Desprovidos dos prazeres, acessíveis apenas aos senhores do discurso encantador (enganador) que procura esmagar a considerá-los. Melhor seria, sentar e iniciar um processo sério no quesito inclusão. Nada é mais revoltante ou estúpido do que não demonstra indignação com esta vida inferior na qual esta mergulhada uma significante parcela da sociedade, em particular os futuros pilares de uma verdadeira sociedade democrática (os jovens). “A desobediência é aos olhos de qualquer estudioso de história, a virtude original do homem”. Neste ponto, compartilho que a desobediência consiste no progresso em não aceitar viver como animal mal alimentado; aceitar que parte destes jovens busque formas de romper com o modelo criado pelo Estado, partindo em busca de reconhecimento que só será acessível por eles através da criação de um Estado paralelo, é no mínimo inaceitável. A omissão do estado na elaboração e pratica das politicas publicas de inclusão, consiste em estimulo a esta parcela que nunca aceitará viver como o pobre virtuoso, citado por OSCAR WILDE, que vendeu sua dignidade e seus direitos por um prato de comida de péssima qualidade. Acredito que todo ser humano tem o direito de ser inteiramente livre capaz de escolher seu próprio trabalho e assim ter acesso ao melhor alimento, claro que ausente de qualquer modalidade de coação. Neste quesito, OSCAR WILDE insiste no papel de profeta: ”NADA PODERIA PREJUDICAR UM HOMEM A NÃO SER ELE PROPRIO”.


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  2. Caro amigo José Ailton
    As suas reflexões decorrem de um mundo real. Entre esse mundo real de fome e miséria existe um outro de ilusões, aquele que criamos para esconder nossas sombras. Acredito que precisamos de justiça social, mas há algo que precinto necessitemos antes, pois, ao meu ver, um depende do outro para existir. Se chama conhecimento. Quando eu desconheço todo o movimento interno que me conduz a fazer minhas escolhas, fico a deriva, vulnerável. Segundo Nilton Bonder vulnerabilidade não é uma coisa ruím, ao contrário, ela é o termômetro que nos indica o nosso grau de compromisso com a verdade sobre nós mesmos. A coisa que pega aqui é usar essa vulnerabilidade para nos esconder na mediocridade. Assim, quanto mais nos conhecemos, quanto mais conhecemos o que tá por trás das nossas "intenções" mais nos apropriamos de nós mesmos. Para Bonde essa é a fonte, mas para beber dela passamos por vários processos de descobertas internas, como diria meu amigo Ailton, demolir a casa e construir outra é melhor do que ficar consertando aqui ou ali.
    Ainda rastreando as reflexões de Bonde, se eu tenho consciência das opções que um conflito pode me oferecer e do meu poder de escolha, isso se chama conhecimento, minhas possibilidades de fazer uma escolha sábia e benévola aumentam. A questão que me provoca ao ver essa realidade carcerária é: como nos conhecer, como conhecer essa relação entre o bem e o mal dentro e fora de nós se o sistema educacional não comporta essa conduta?

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