quarta-feira, 5 de setembro de 2018

EU, SOPHIA E ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS



Uma tarde no shopping e lá vamos nós, eu e Sophia, para nosso cantinho favorito, a livraria. Ah, perdão, Sophia é minha primogênita e dia 10/09 faz nove anos. Chegada a hora de irmos embora, via de regra, ela me pede para levar um livro, olhei o exemplar e perguntei, porque Alice no país das maravilhas? - Ah, porque eu assistir ao filme e quero ler o livro, ou melhor, quero que o senhor leia comigo todos os dias algumas páginas antes de dormir. Como ainda não tinha lido a obra, num primeiro instante, imaginei que o livro era infantil, mas não é. À medida que, a leitura avançava, tive a sensação que o livro é uma crítica severa a razão vitoriana e a ciência moderna, ambas intimamente presentes em nossas vidas cotidianas.

A crítica presente em Alice, entendimento pessoal, se estabelece as regras racionais, seja na etiqueta, na poesia, na política, na moral ou mesmo no palácio de Buckingham¹. O livro nos conduz a assumirmos o protagonismo de Alice e nos depara com a seguinte reflexão; quando olhamos de um do ponto de vista interno, ou seja, dentro do mundo das regras, tudo faz sentido. Contudo na relação dialógica do indivíduo com o mundo, tudo não passa de loucura completa. Entenda nesta narrativa nosso mundo como sendo a Inglaterra, o mundo onde conhecemos as regras, onde tudo é "normal", e o país das maravilhas é o mundo do outro, do desconhecido e do "anormal".

Qual é o enigma de Charles Lutwidge Dogson, mais conhecido pela alcunha de Lewis Carroll? É o de que, há um problema de pensar o mundo a partir das regras do lugar onde se estar, pois as regras deste lugar não são universais e que, nesse caso, não podem ser aplicadas em qualquer lugar do mundo sem diferenças. Essa é a grande loucura que Alice, e quem se coloca no lugar dela, percebe ao tentar usar as regras racionais e familiares [da Inglaterra] em outro mundo.

Ouso afirmar, que esse é o sintoma mais característico da modernidade, acreditar que no instante em que descobrimos uma verdade, ela pode se espalhar e ter aplicabilidade pelo mundo. Essa foi a premissa que estimulou o processo de colonização na África, Ásia e América; o que se estabeleceu com os povos desses continentes é prova da supremacia desta premissa que serviu de base ao colonialismo. Se pegarmos alguns exemplos do predomínio deste pensamento, poderíamos apontar o uso de roupas quentes em regiões frias como a Inglaterra e a crença que se pode aplicar o mesmo modelo em regiões não tão frias, na mesma toada, podemos apontar o chá das 17:00 na fria Londres e a aplicação em Nova Deli, na Índia. Ou ainda, a implantação salvacionista no Brasil de teorias, pensamentos, ideias e valores importados de nações estrangeiras, ignorando as distinções e particularidades.   

Com base no exemplo acima, a razão de ser dos hábitos, vestimentas e valores seriam universais e abstratos, bem como independe das condições histórico-espacial-cultural em que as realidades estão imersas. Isso é loucura! Gritou Alice dentro de nós. Essa loucura somente não é percebida por aqueles que, assim como a irmã de Alice, estão lendo livros onde não tem a presença de diálogos nem figura, por conseguinte, é um livro de teoria, algo bem diferente de livros com personagens, histórias, fatos e acontecimentos, tipo um romance, pois o romance ele oculta, disfarça, mimetiza a vida.

A Alice do país das maravilhas se interessa pela vida e não pela teoria, e, é justamente por isso, que ela vê o coelho branco passar, do contrário, se ela estivesse imersa no mundo da teoria, jamais teria visto o coelho passar. E, digo mais, ela não teria se lançado em outro mundo, não teria experienciado outras lógicas, outra razão, que isolada nos próprios mundos fazem sentido, todavia quando se relacionam com outros mundos, não passam de meras loucuras.

No final do livro, quando os guardas vêm prendê-la, ela diz: - vocês não passam de um bando de cartas! Pergunto a você: - qual o valor de uma carta qualquer num dado baralho? Acertou! A resposta é justamente esta: - depende do tipo de jogo e de como são as regras, ou melhor, de quem as criou ou de quem pode alterá-las. Agora, vem a provocação, em um jogo onde alguém cria as regras, pode-se dizer que esse jogo é neutro? Não se ofenda com o que vou falar, mas a imparcialidade é uma mentira. O jogo é ganho na racionalidade do próprio jogo.

Ainda sobre regras, jogo, imparcialidade, faço-lhe uma nova indagação: - à medida que, alguém [indivíduo ou grupo] conhece bem as cartas, estabeleceu as regras e se põe a jogar, o outro jogador pode sair vitorioso? Não precisam me responder, suponho que tenhamos respostas análogas, afinal o outro jogador somente pode ganhar se agir igual Alice, a saber, tirar o nariz do livro sem imagem e diálogo [teoria] e colocar o nariz na vida, na concretude da existência. A primeira vista, parece um trocadilho ingênuo, comparado com o julgamento açodado que o livro é infantil, porém ele mostra o avesso de uma realidade, que ainda hoje nos causa assombramento. Que a racionalidade não é o melhor dos mundos, pois fora instituída a partir de uma lógica. 

vejamos outro exemplo, vamos pegar o colapso financeiro da Grécia. Pergunto a você amigo leitor, que fez o FMI² se não impor regras [racionais] para aquele país e o mundo seguir? Fato semelhante se observa, quando o MEC³ impõe uma Base Nacional Comum Curricular para o país. Aqui, ainda ouvimos ecos de Alice, acreditando que as regras da Inglaterra [seu lar, o lugar de onde se fala e pensa] poderia se aplicar no país das maravilhas, e, nesse instante podemos rir com ela e dizer: 

- Isso é loucura!

Voltei-me para Sophia e expus de modo simplista a discussão acima e ela me respondeu: - Pai, isso é apenas uma estória, nada disso é de verdade, não é real, o senhor está falando como se nós estivéssemos dentro do livro e Alice estivesse aqui em nossa casa. Parei por um breve instante, sorrir e pensei; estamos no mesmo jogo, usando as mesmas cartas, porém nossas regras [razão] não são as mesmas. 

Voltei-me novamente para Sophia e lhe disse: 
- Boa noite e lembre de rezar! Apaguei a luz do quarto e fui me horizontalizar no sofá da sala, fiquei ali, quietinho, a pensar um pouco mais sobre, Eu, Sophia e Alice no país das maravilhas.

  


José Ailton Santos - Licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe, Pós Graduado pela Faculdade Pio X em História do Brasil, Graduando do curso de Administração de Empresas pela UNIT, ex-professor efetivo da rede estadual de ensino do estado de Sergipe, funcionário efetivo do Banese com certificação pela ANBIMA, blogueiro, poeta de ocasião e portador de SPNDLR [síndrome patológica de necessidade diária de leitura e reflexão].

       

¹ Palácio de Buckingham - é a residência oficial e o principal local de trabalho do monarca do Reino Unido.

² Fundo Monetário Internacional - Em tese é uma organização internacional criada com a intenção de promover a cooperação monetária internacional, garantir a estabilidade financeira, facilitar o comércio internacional, promover o alto nível de emprego e o crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza em todo o mundo. 

³ Ministério da Educação e Cultura - Órgão do governo federal brasileiro, que trata da política de educação nacional em geral, compreendendo: ensino fundamental, médio e superior.



6 comentários:

  1. Você é um grande pai, qual criança não gostaria de tê-lo?
    Um exemplo de amor incondicional que a cada dia, raras exceções vistos nas famílias modernas.

    ResponderExcluir
  2. As coisas que não tem nome são mais pronunciadas por crianças.Pouca gente entende.Pouca gente é boa gente.Pouca gente boa sabe que nada sabe.Sorte das crianças que não deixaram o coração virar de gente grande que acha que tudo sabe ou que sabe tudo.A pureza não está no dicionário.Encontra-se no coracão.É por isso que o Reino de Deus é comparado ao coração das crianças.E qualquer mera comparação com o livro Alice no país das maravilhas não será mera coincidências.Esse mundo da Alice não é utópico é real e possui alma.E por um momento devíamos todos nós render a esses universos paralelos para florescermos de dentro pra fora.Se ser Alice no país das maravilhas tem suas repudias, viver no mundo adulto também tem suas perfeitas contradições.Alice no País das maravilhas tem Vértices no horizontes.Eu desejo que Sophia cresça uma criança linda e se torne um adulta mais linda ainda e de alma grandiosa.

    Nunca se distancie da vontade divina.Deus ama vc e sua família

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado desconhecido pelos seus comentários, eles me ajudam a produzir novos diálogos.

      Excluir
  3. No inicio da narrativa, percebe-se que Alice é uma menina criativa, com uma mente fértil, própria da infância e que está entediada com o mundo "real", pois sua irmã lia um "livro sem figuras nem diálogos".
    Vivia em outra época, em que somente os livros, mais especificamente a Literatura poderia "dar asas à imaginação" ou transportar para outros mundos mais atrativos e menos entediantes.
    Hoje, somos hipnotizados pelas telas, smartphones, redes sociais que nos deixam absortos e anestesiados por sua liquidez e velocidade. Não há mais tempo de olharmos para dentro...para nosso mundo interior, a fim de refletirmos sobre quem somos, o que fazemos de nós, o que queremos ser...ainda há tempo?!
    A hipermodernidade nos afasta cada vez mais dessa imersão em nós mesmos, da busca de si. É essa a jornada de Alice: através do sonho, ela mergulha em seu subconsciente e inicia seu processo de individuação (Jung). Primeiro enfrenta aquela sensação de inadequação permanente (grandes ou pequenos demais para caber em determinada situação); segue os comandos, as regras, as convenções (coma, beba...); sente-se vulnerável à opinião alheia acerca do que deveria ser... Até o encontro com a lagarta (símbolo da transmutação) e o grande questionamento: "Quem é você?" "De que tamanho você quer ser?" e Alice fica confusa, não sabe ao certo quem é, pois já se perdeu de si mesma na loucura do País das Maravilhas.
    É o momento em que nos questionamos: "Quem sou eu?"; "Aonde quero ir?"; "O que fiz de mim até esse momento?". Como já disse Hamlet, de Shakespeare, "eis a questão!".
    No desfecho da narrativa, Alice permite-se pensar, questionar e ergue sua voz, pois se sente segura, amadurecida. Por fim, conclui: "Vocês não passam de cartas de baralho...", isto é, ela racionaliza, permite a presença do intelecto, é o fortalecimento do ego, a conclusão da primeira etapa do seu processo de individuação e já pode retornar à realidade da vida exterior.
    O sol se põe e a irmã olha contemplativamente para Alice ao perceber que a menininha logo se tornará mulher (fim da infância), assim como o papai sentado no sofá percebeu que a pequena Sophia... logo, logo será uma bela e questionadora adolescente, graças ao seu exemplo. Gratidão por compartilhar suas reflexões.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, minha amiga, Priscila Mendonça, que satisfação tê-la de volta como leitora e comentadora dos debates que travo diariamente comigo mesmo.

      Excluir