quinta-feira, 21 de maio de 2020

NAMORO NAS ÁGUAS




Mal o Sol nasceu
e lá estava ela
para mais um dia de namoro
com o Chico¹.


Tocou a ponta do pé
nas águas que beijavam,
                                      - num frenesi ininterrupto -
a margem do Chico.


Ela veio com passos calmos,
como se desejasse sondá-lo,
como se desejasse se [re]conectar.
Acredito que buscava mesmo,
se energizar, entrar em sintonia...


Despiu-se, ali mesmo
- vagarosamente, sem pressa, sem ruído -
achatada entre a palidez da Caatinga² e o Chico.
As aves, os peixes, o espaço infinito e móvel...
a tudo assistiam: admirados e pasmos,
diante de tamanho primor.


O vento suave e fresco à beira rio,
sorrateiro veio acariciar sua cútis macia,
enquanto, paulatinamente, entrou nas águas
alguns passos adentro e submergiu no Chico;
submersa, bailava em acrobacias lascivas.


Eis que emerge
em meio as águas claras do Chico
e feito deidade olímpica,
expõe um sorriso faceiro e garrido:
queixo elevado,
lábios esticados ,
dentes alvos à mostra,
maçãs da face - arredondadas e polidas -,
olhos retesados em emanação de prazer.
Todo o ser reluzia.


O bailado das águas
pareciam aplaudir
radiante beleza.
Enquanto o Sol, agora desperto,
se diluia em cortejo e calor,
a beijar - incansavelmente -
aquele corpo delgado
aplainado na malemolência do Chico.


Eu, como por destino, ali estava,
camaleonicamente em meio a vegetação
e dentro da minh'alma [sem freios] eclodiu,
irremissivelmente uma voz plangente,
que me contorcia com ciúmes do Chico.

Ai de mim! Ai'mi!³







¹ - Alcunha popular atribuída ao Rio São Francisco ou Velho Chico, esse que é um dos mais importantes rios do Brasil e das Américas, também conhecido como rio da integração nacional, pelo fato de atravessar cinco estados do país, a saber, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

² - Substantivo feminino, que representa uma mata do nordeste brasileiro, onde a vegetação possui folhagem e é quase exclusivamente de espinhos, cactos e gravatás.

³ - Ai de mim! Ou Ai'mi! Uma espécie de gemido grego popularizado pelo ator, diretor e apresentador de TV, Antônio Abujamra, que apresentava um programa de entrevista na TV Cultura intitulado, Provocações, faleceu aos 82 anos, em abril de 2015.




José Ailton Santos - Licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe [UFS], Pós-graduado pela faculdade Pio X em História do Brasil, graduando do curso de Administração de Empresas pela Universidade Tiradentes [UNIT], ex-professor efetivo da rede estadual de ensino do estado de Sergipe, funcionário efetivo do Banco do Estado de Sergipe com certificação pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais [ANBIMA], blogueiro, poeta de ocasião e portador da SPNDLR [Síndrome Patológica de Necessidade Diária de Leitura e Reflexão]

3 comentários:

  1. O poema demonstra volúpia em toda sua descrição, que está mais nos olhos de quem descreve com um olhar juvenil e cheio de hormônios "retesados" do que na realidade em si. O rio é um elemento natural a que foi conferido uma rica simbologia. Segundo Heráclito de Éfeso, "nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!", isto é, representa o transcurso irreversível da vida que nos transforma a cada instante para o bem ou para o mal. O rio é o lugar de purificar-se, de diluir-se e desprender-se por alguns instantes do “eu”, de fazer parte da água e fluir com ela. A água doce representa a feminilidade, é uma água mítica, que traz uma dicotomia: a ideia de pureza, de limpeza do físico e do inconsciente; como também a dualidade, do rio que limpa e, ao mesmo tempo, turva-se com a sujeira. Enquanto a moça faz-se leve e limpa, a cena turva ainda mais a mente do espectador sorrateiro, que se comporta como um "voyeur", sente prazer ao observar, mas inveja o rio. Ai de ti.

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  2. Imagino cada cena.
    Imagino a água calma, convidativa.
    Imagino delicadamente removendo os tecidos que a impediam de se (re)conectar e de (re)encontrar a sintonia com ela mesma.
    Imagino toda natureza admirando-a, não só por sua beleza, mas por sua total entrega. Ela não está despindo apenas o corpo, despe a alma.
    A imagino submergir deixando tudo nas profundezas do Chico, desamores e desencontros.
    Ela emerge com ousadia, repleta de coragem projeta insolência, irreverência que é traduzida no seu sorriso altivo.
    Ela emerge e agora se reconhece. Ao perceber, as águas aplaudem, o sol a abraça em radiante calor.
    Ao Chico, ao Velho Chico agradece por acolhe-la e liberta-la.
    E nas margens os olhares periféricos, camuflados e êmulos, mesmo de longe admiram e testemunham todo ritual.

    Que a inspiração te seja companheira constante, pois talento não te falta.Fantástico!

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