segunda-feira, 27 de maio de 2024

MORTE E VIDA*



As sandálias eram desgastadas

igualmente os pés,

que ora pisava o chão quebradiço

de cimento batido e queimado.


Tocava o chão com um dos pés

enquanto o outro suspenso

repousava na perna cruzada

em um malabarismo

músculo-esquelético.


O chão estava úmido,

devido intenso inverno.

Morava em um casebre

[quatro paredes irregulares]

nos fundos da casa

da incontinente família.


Portas e janelas,

gastos igualmente,

não oferecia proteção,

apenas aformoseava o lugar.


O corpo que ali habitava

se assemelhava ao telhado

desgastado, desajeitado, desalinhado

algumas telhas quebradas

outras remexidas 

por felinos domésticos 

[acasalamento e domínio]

que geravam espaços vazios

por onde tudo espiava:

a luz das estrelas

a luz da lua

luz do Sol

luz do dia

até inconvenientemente

a luz d'alma.


Por ali também passava

as águas da chuva

dos insistentes dias chuvoso 

do abundante inverno

que fazia florir toda ordem de miséria.


Ficava ali [petrificado] por horas

sentado em um banco de madeira rude

com quatro pés moles e gastos

igualmente 

o corpo que nele sentava.


A luz opaca do lugar 

deixava o ambiente numa ambivalência

entre o escuro e o claro

num jogo feérico de sombras e formas.


A vida que se envolvia

com fumaça e malemolência

extraída do charuto artesanal,

feito de fumo criolo¹ e resto de embrulho,

que emoldurava o canto torto da boca.

Bem se diz: "o uso do cachimbo entorta a boca²".

E a vida é tecida por desentortamentos.


O cenário radiografado

deixava o ambiente

ainda mais nebuloso.


As mãos cansadas

descansava sobre o joelho,

corpo esquálido,

vestes mal-ajambradas,

cabelos acinzentados e sebáceos,

fisionomia gélida,

olhar fundo,

sem expressão,

enterrado na sua face,

esquelética e enrugada...

Típica fisionomia

de quem já viu a dor 

em todas as suas faces.


Aquele ser que se perdia,

no vazio de um canto do casebre,

descortinava uma realidade visceral,

que a fumaça do charuto [artesanal]

timidamente tentava encobrir.


A janela entreaberta

e a porta semiaberta,

contrastava com seu lábios,

sempre cerrados

num silêncio sepulcral.


Era uma casa simples

num cenário simples

desnudando uma vida simples

de um homem simples

em um lugar desigual

em um Brasil continental.


Todavia, a vida continua...



José Ailton Santos


* O título do poema deseja lincar o leitor com o texto, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que desseca o percurso de um retirante durante a seca nordestina, onde o personagem se depara com as maiores dores da alma: pobreza, desespero e morte. O personagem dar sinais que pretende desistir da vida, mas eis que essa acaba prevalecendo.

¹ Popularmente conhecido como fumo de rolo, ou ainda fumo de corda, é um tipo de fumo [tabaco] torcido e enrolado, comumente usado para confeccionar cigarros de palha [do milho seco], mas também usado para ser mascado em pequenos pedaços.

² Provérbio popular que procura descrever metaforicamente as pessoas que se acostumam demasiadamente em fazer algo que acaba incorporando o tal fazer ao seu hábito. Essa analogia inclui: falar, pensar e ser.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

VESTIDO DE POESIA




Quando escrevia poesias

pensava que poesia 

era uma mulher nua.

[ideal ou concretamente].

E uma boa poesia 

era uma mulher nua

deitada ao meu lado,

com a cabeça 

repousada em meu peito.


Hoje, não escrevo poesias,

acabei casando com os versos.

A nudez d'antes

é simplória

são rimas pobres...

descobri que a mulher vestida

é rima emparelhada,

alternadas [primeiro com o terceiro]

é rima oposta ou interpoladas

[primeiro com o quarto

e segundo com o terceiro]

é rima aguda e esdrúxula.


A mulher bem composta 

são versos decassílabos

[à moda de Camões¹]

são versos alexandrinos.

A mulher bem vestida 

é a beleza métrica,

que repousa na elegância,

que o digam, Castilho² e Machado³.


A nudez poética

é a poesia nua,

porém vestida.

Do contrário,

é apenas uma nudez Adâmica*

[que jamais é o que se pensa ser**]

o que é ridícula

não serve nem para soneto

não sem razão, 

Deus fez roupas de pele

e os vestiu.


Já não escrevo mais, 

a nudez não me apetece,

a vestimenta se rasgou.

De resto,

a nudez vestindo o verso e a poesia 

eis no que me tornei.




José Ailton Santos



¹ - Camões - Referência a Luís Vaz de Camões, um poeta português e um dos maiores poetas da literatura lusófona e da literatura ocidental. 

² - Castilho - Referência a Antônio Feliciano de Castilho, escritor romântico português e sistematizador do verso alexandrino francês.

³ - Machado - Referência a Joaquim Maria Machado de Assis, sem sombra de dúvidas o maior nome da literatura brasileira, e o primeiro a usar em larga escala no Brasil o verso alexandrino, no período estético do Romantismo.

* - Adâmico - Referência a Adão, primeiro homem que habitou o mundo, de acordo com a Bíblia.

** - Referência a FREUD ao tratar da nudez da consciência narcísica imediata. Para ampliação sobre o tema indico três obras do autor, a saber, Totem e Tabu [1974], Mal-estar na civilização [1996] e Além do princípio do prazer [2006].