As sandálias eram desgastadas
igualmente os pés,
que ora pisava o chão quebradiço
de cimento batido e queimado.
Tocava o chão com um dos pés
enquanto o outro suspenso
repousava na perna cruzada
em um malabarismo
músculo-esquelético.
O chão estava úmido,
devido intenso inverno.
Morava em um casebre
[quatro paredes irregulares]
nos fundos da casa
da incontinente família.
Portas e janelas,
gastos igualmente,
não oferecia proteção,
apenas aformoseava o lugar.
O corpo que ali habitava
se assemelhava ao telhado
desgastado, desajeitado, desalinhado
algumas telhas quebradas
outras remexidas
por felinos domésticos
[acasalamento e domínio]
que geravam espaços vazios
por onde tudo espiava:
a luz das estrelas
a luz da lua
luz do Sol
luz do dia
até inconvenientemente
a luz d'alma.
Por ali também passava
as águas da chuva
dos insistentes dias chuvoso
do abundante inverno
que fazia florir toda ordem de miséria.
Ficava ali [petrificado] por horas
sentado em um banco de madeira rude
com quatro pés moles e gastos
igualmente
o corpo que nele sentava.
A luz opaca do lugar
deixava o ambiente numa ambivalência
entre o escuro e o claro
num jogo feérico de sombras e formas.
A vida que se envolvia
com fumaça e malemolência
extraída do charuto artesanal,
feito de fumo criolo¹ e resto de embrulho,
que emoldurava o canto torto da boca.
Bem se diz: "o uso do cachimbo entorta a boca²".
E a vida é tecida por desentortamentos.
O cenário radiografado
deixava o ambiente
ainda mais nebuloso.
As mãos cansadas
descansava sobre o joelho,
corpo esquálido,
vestes mal-ajambradas,
cabelos acinzentados e sebáceos,
fisionomia gélida,
olhar fundo,
sem expressão,
enterrado na sua face,
esquelética e enrugada...
Típica fisionomia
de quem já viu a dor
em todas as suas faces.
Aquele ser que se perdia,
no vazio de um canto do casebre,
descortinava uma realidade visceral,
que a fumaça do charuto [artesanal]
timidamente tentava encobrir.
A janela entreaberta
e a porta semiaberta,
contrastava com seu lábios,
sempre cerrados
num silêncio sepulcral.
Era uma casa simples
num cenário simples
desnudando uma vida simples
de um homem simples
em um lugar desigual
em um Brasil continental.
Todavia, a vida continua...
José Ailton Santos
* O título do poema deseja lincar o leitor com o texto, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que desseca o percurso de um retirante durante a seca nordestina, onde o personagem se depara com as maiores dores da alma: pobreza, desespero e morte. O personagem dar sinais que pretende desistir da vida, mas eis que essa acaba prevalecendo.
¹ Popularmente conhecido como fumo de rolo, ou ainda fumo de corda, é um tipo de fumo [tabaco] torcido e enrolado, comumente usado para confeccionar cigarros de palha [do milho seco], mas também usado para ser mascado em pequenos pedaços.
² Provérbio popular que procura descrever metaforicamente as pessoas que se acostumam demasiadamente em fazer algo que acaba incorporando o tal fazer ao seu hábito. Essa analogia inclui: falar, pensar e ser.
