sábado, 23 de novembro de 2024

FLOR DE LÓTUS


Toda noite “escura” 

oferece pontos iluminados. 

Toda anestesia, esconde a dor.

Até a lama, nos oferece a flor de lótus.


Já oferecemos:

Pão 

Circo

E agora, dinheiro [papel, plástico, eletrônico...]


Já defendemos:

Livre iniciativa 

Propriedade privada 

Ideologias [para viver e morrer]


Já implantamos: 

New Deal

Plano de Metas

Bolsas, cestas, cotas...


Hoje vivemos: 

Amores sensíveis ao toque 

Verdades com filtros solares

Liberdades que aprisionam

Celas nas quais nos trancamos


A humanidade continua atraindo

desgraças, misérias, sofrimentos

por meios dos pensamentos e ações


Nunca estivemos tão distantes 

dos portais do equilíbrio.


Só o caminho íngreme 

nos levará ao cume.

Para tal fim,

devemos espelhar a garça branca

que sobrevoa e dorme no lodaçal

sem, contudo, manchar suas plumas.



JOSÉ AILTON SANTOS





quarta-feira, 5 de junho de 2024

O HOMEM E A ÁRVORE•



Um rei, preocupado

com a instrução dos filhos,

perguntou aos ministros:

- como posso tornar

meus filhos sábios?


Um, disse-lhe:

- um corpo precisa amadurecer

para gerar uma vida.


Um outro acrescentou:

- Uma planta precisa se desenvolver

para desabrochar

e gerar frutos e sementes.


Um terceiro, falou:

- uma mente precisa 

saborear os anos

para entender certas coisas.


O quarto, falou-lhe,

com voz firme e pausadamente,

exibindo superioridade escolástica¹:

- uma mente para encher seu paiol 

com os saberes das ciências,

para ver além da cortina de fumaça ²

e dessecar os mistérios ocultos³,

precisa ser temperada com 

o calor dos verões,

as amenidades dos outonos,

o frio intenso dos invernos 

e, por fim, a floração

e renascimento das primaveras.


O rei com ares de enfado, 

olhou para o quinto e falou:

- e tu, que dizes?


O quinto, fitou-lhe, e ao receber

o olhar mútuo do rei, emitiu seu juízo:

- As palavras são infinitas

assim, como as ciências 

a serem estudadas.

Todavia, a duração da vida

não é eterna

enquanto, os obstáculos

são infindáveis.


Entendo sua sincera reserva.

Afinal, de que nos serve

uma vaca que não procria

nem nos fornece leite?


Na mesma toada,

de que nos serve ter filhos

se não os forem sábios e piedosos?

Deste modo, não adianta os tê-los:

ricos

formosos

adornados...

se estes são ignorantes.


Antes, que estes,

nasçam e morram

ou resultem em abortos...

do que, escapando da morte, 

vivam sendo estúpidos.

Aqueles*, causam dores curtas,

esses**, atormentam uma vida inteira.


O rei em frenesi, gritou:

- dou-lhe mil privilégios

se me deres o remédio cabal!


O quinto, retoma a vereda da fala

e em peroração, declara:

- não lhe vendo o remédio

nem por infinitos privilégios,

contudo, em curto prazo

entregar-lhe-ei seus filhos

versados nas ciências profícuas.

E, se por acidente, fracassar

renuncio ao meu nome***.


Os filhos do rei, o sucederam

e prosperaram salomonicamente**** 

ampliaram a glória dos dias passados

e trouxe concórdia ao reino,

como nunca se viu em alhures.


Os livros que os doutrinaram

estão mortos e sepultados,

por setenta vezes sete¹¹ palmos 

de camadas de mentiras

que, ao longo dos séculos, 

foram convertidas em verdades.



José Ailton Santos



- inspirado no Panchatantra: o’ cinco series de cuentos orientales

 ¹ - Escolástica foi o método crítico dominante no ensino nas universidades medievais europeias no período dos séculos IX ao XVI, que surgiu da necessidade de responder às exigências da fé, sendo mais um método de aprendizado que uma teologia.

² - expressão empregada para denotar um olhar que enxerga além dos formalismo, um olhar que percebe as intenções e inclinações.

³ - oculto é um termo alegórico para distinguir o saber que escapa a incredulidade e à ignorância, visto que, se apoia igualmente sobre a ciência e a fé.

* - recurso linguístico para se refere aos seres que nascem e morrem.

** - recurso linguístico para se referir as pessoas estúpidas.

*** - espécie de ultraje pior que a desgraça e a morte.

**** - Referência à Salomão, rei dos hebreus, que é considerado sábio e criterioso, reverenciado por ter sido um governante sábio e justo. No texto serve de referência para quem busca se inspirar nos ensinamentos e nas qualidades desse rei.

¹¹ - Analogia ao texto bíblico dos livros: Gêneses, 4,23-24 e o livro de Mateus, 18: 21-22, dando a ideia de um perdão infinito, já no texto ora apresentado a expressão visa dar uma ideia de que a essência da verdade é inalcançável. 




segunda-feira, 27 de maio de 2024

MORTE E VIDA*



As sandálias eram desgastadas

igualmente os pés,

que ora pisava o chão quebradiço

de cimento batido e queimado.


Tocava o chão com um dos pés

enquanto o outro suspenso

repousava na perna cruzada

em um malabarismo

músculo-esquelético.


O chão estava úmido,

devido intenso inverno.

Morava em um casebre

[quatro paredes irregulares]

nos fundos da casa

da incontinente família.


Portas e janelas,

gastos igualmente,

não oferecia proteção,

apenas aformoseava o lugar.


O corpo que ali habitava

se assemelhava ao telhado

desgastado, desajeitado, desalinhado

algumas telhas quebradas

outras remexidas 

por felinos domésticos 

[acasalamento e domínio]

que geravam espaços vazios

por onde tudo espiava:

a luz das estrelas

a luz da lua

luz do Sol

luz do dia

até inconvenientemente

a luz d'alma.


Por ali também passava

as águas da chuva

dos insistentes dias chuvoso 

do abundante inverno

que fazia florir toda ordem de miséria.


Ficava ali [petrificado] por horas

sentado em um banco de madeira rude

com quatro pés moles e gastos

igualmente 

o corpo que nele sentava.


A luz opaca do lugar 

deixava o ambiente numa ambivalência

entre o escuro e o claro

num jogo feérico de sombras e formas.


A vida que se envolvia

com fumaça e malemolência

extraída do charuto artesanal,

feito de fumo criolo¹ e resto de embrulho,

que emoldurava o canto torto da boca.

Bem se diz: "o uso do cachimbo entorta a boca²".

E a vida é tecida por desentortamentos.


O cenário radiografado

deixava o ambiente

ainda mais nebuloso.


As mãos cansadas

descansava sobre o joelho,

corpo esquálido,

vestes mal-ajambradas,

cabelos acinzentados e sebáceos,

fisionomia gélida,

olhar fundo,

sem expressão,

enterrado na sua face,

esquelética e enrugada...

Típica fisionomia

de quem já viu a dor 

em todas as suas faces.


Aquele ser que se perdia,

no vazio de um canto do casebre,

descortinava uma realidade visceral,

que a fumaça do charuto [artesanal]

timidamente tentava encobrir.


A janela entreaberta

e a porta semiaberta,

contrastava com seu lábios,

sempre cerrados

num silêncio sepulcral.


Era uma casa simples

num cenário simples

desnudando uma vida simples

de um homem simples

em um lugar desigual

em um Brasil continental.


Todavia, a vida continua...



José Ailton Santos


* O título do poema deseja lincar o leitor com o texto, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que desseca o percurso de um retirante durante a seca nordestina, onde o personagem se depara com as maiores dores da alma: pobreza, desespero e morte. O personagem dar sinais que pretende desistir da vida, mas eis que essa acaba prevalecendo.

¹ Popularmente conhecido como fumo de rolo, ou ainda fumo de corda, é um tipo de fumo [tabaco] torcido e enrolado, comumente usado para confeccionar cigarros de palha [do milho seco], mas também usado para ser mascado em pequenos pedaços.

² Provérbio popular que procura descrever metaforicamente as pessoas que se acostumam demasiadamente em fazer algo que acaba incorporando o tal fazer ao seu hábito. Essa analogia inclui: falar, pensar e ser.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

VESTIDO DE POESIA




Quando escrevia poesias

pensava que poesia 

era uma mulher nua.

[ideal ou concretamente].

E uma boa poesia 

era uma mulher nua

deitada ao meu lado,

com a cabeça 

repousada em meu peito.


Hoje, não escrevo poesias,

acabei casando com os versos.

A nudez d'antes

é simplória

são rimas pobres...

descobri que a mulher vestida

é rima emparelhada,

alternadas [primeiro com o terceiro]

é rima oposta ou interpoladas

[primeiro com o quarto

e segundo com o terceiro]

é rima aguda e esdrúxula.


A mulher bem composta 

são versos decassílabos

[à moda de Camões¹]

são versos alexandrinos.

A mulher bem vestida 

é a beleza métrica,

que repousa na elegância,

que o digam, Castilho² e Machado³.


A nudez poética

é a poesia nua,

porém vestida.

Do contrário,

é apenas uma nudez Adâmica*

[que jamais é o que se pensa ser**]

o que é ridícula

não serve nem para soneto

não sem razão, 

Deus fez roupas de pele

e os vestiu.


Já não escrevo mais, 

a nudez não me apetece,

a vestimenta se rasgou.

De resto,

a nudez vestindo o verso e a poesia 

eis no que me tornei.




José Ailton Santos



¹ - Camões - Referência a Luís Vaz de Camões, um poeta português e um dos maiores poetas da literatura lusófona e da literatura ocidental. 

² - Castilho - Referência a Antônio Feliciano de Castilho, escritor romântico português e sistematizador do verso alexandrino francês.

³ - Machado - Referência a Joaquim Maria Machado de Assis, sem sombra de dúvidas o maior nome da literatura brasileira, e o primeiro a usar em larga escala no Brasil o verso alexandrino, no período estético do Romantismo.

* - Adâmico - Referência a Adão, primeiro homem que habitou o mundo, de acordo com a Bíblia.

** - Referência a FREUD ao tratar da nudez da consciência narcísica imediata. Para ampliação sobre o tema indico três obras do autor, a saber, Totem e Tabu [1974], Mal-estar na civilização [1996] e Além do princípio do prazer [2006]. 


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

NO SILÊNCIO DA NOITE


Me descobri velho

ninguém me disse

eu mesmo percebi.


Como gosto de dormir 

às últimas horas da noite

[uma rotina crônica].

Saibam que luto para mudar de hábito.

Mas, enfim, o fracasso nesta tentativa

também me fez perceber

que estou velho.


Todos sabem, velhos não tem sono

e teimam em fazer companhia às noites.

Além de ficar vagando, de atalaia, à noite

notei que leio mais, e, todos sabemos, 

ler também é coisa de velho.

E ainda que haja jovens leitores

esses são velhos

que ainda não se descobriram velhos.


Notei que tenho evitado multidões,

típico hábito de velho.

Afinal, esses gostam de ficar:

em casa, em lugares calmos

quietinhos, tranquilos...

daí percebi que são coincidências demais.


Também tenho pensado mais

sobre a vida e a morte;

vão dizer que isso não é 

coisa de velho?


Revisito memórias,

coisa de velho.

E na estrada mnemônica da vida

encontrei:


Verdades, Velórios, Virtudes...

Encantamento, enlevo, esperança...

Lágrimas, lástimas, lamentações...

Honradez, horrores, homens...

Orgulho, opróbrio, Onisciência...


Um típico ir e vir característico 

de um tribunal consciencioso 

de velho.


Percebi que minha face 

[não se trata da pele ressequida e flácida]

ficou triste e com semblante zangado,

típica fisionomia, de velho.


Nas idas, recorrentes e regulares, aos médicos

alguns diagnósticos também me fizeram perceber 

que envelheci.

Descobrir que meu corpo 

ficou com ciúmes de mim

e resolveu ficar velho. [quem já viu isso?] 


Que fazer diante da constatação?

Resolvi ser um velho diferente

de todos os outros velhos.

Resolvi não seguir pela estrada:

- da ranhetice

- das nostalgias

- das lamentações

- das queixas contínuas

- das crenças pessimistas

de velho.


Resolvi seguir pela estrada mais estreita*:  

- da gratidão

- da felicidade 

- da consciência plena...

e, por fim, fazer do riso poesias.


Ah, poetas!

Ah, poesias!

Isso também é coisa de velho.

Velho com coração do peso de uma pluma**.



José Ailton Santos


* Referência ao texto do livro bíblico de Mateus 7:13-14, - duas portas, dois caminhos - "entrem pela porta estreita, porque é largo e espaçoso o caminho que leva para a perdição. E são muitos os que tomam esse caminho. Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva para a vida! E são poucos os que o encontram".

* * Referência a uma cena representada no Livro dos Mortos - tradição egípcia - onde na cerimônia de pesagem do coração do defunto, no tribunal da deusa Maat, uma espécie de juízo final, a deusa colava o coração do morto de um lado da balança e do outro uma pluma [representando a justiça] teria destino mais nobre na vida após a morte, o espírito do morto que tivesse o coração mais leve que o peso da pluma da deusa.