terça-feira, 26 de maio de 2020

RASGA - MORTALHA*



Empoleirou-se na fachada
e se dispôs a pipilar,
um gemido de medo,
um som de seda rasgada.

Acordou-me assustado
sem nenhuma cerimônia.
Desta vez,
Eu - era o moribundo.
Lembrei das histórias
e um frio me arrepiou 
a parte posterior do pescoço.

O sino badalou, 
fez soar por todo o vale
 - início da madrugada - 
E, em seguida, ouviu-se,
repetidamente,
o som da ruína.
A ave emitia seu gemido de augúrio.

Diz o cancioneiro popular:
"o canto desta ave
é prenúncio da morte".
E eis que tens razão!
Posso atestar.
Ontem, a ave piou em minha casa
e hoje, ao invés da morte,
meu vizinho [trouxe vinho] e veio cear comigo.
Antes de se despedir, confessou:
- a carne cozida estava deliciosa!

E se é certo que a ave
é prenúncio da morte.
Por certo,
nem a ave
nem o agouro 
nem a morte
nem as carpideiras**
...
voltarão a visitar alhures.
Ao menos, não por ora,
enquanto mira e estilingue 
estiverem atilados.




* - A coruja-rasga-mortalha possui o nome científico de Tyto Furcata. Ela pertence a família Tytonidae e é conhecida em inglês como American Barn Owl. Esta ave é conhecida por muitos nomes que se referem a sua aparência, como: Coruja-branca, corja-de-prata, coruja-demônio, coruja-fantasma, coruja-morte, coruja-de-noite, coruja-rato, coruja-caverna, coruja-de-pedra, coruja-passatempo, coruja-maquineta, coruja-de-peito-branco, coruja-dourada, coruja-de-palha, coruja-curral, coruja-delicada, coruja-das-torres, coruja-da-igreja, coruja-do-campanário e principalmente, como Suindara, esse último associado a uma lenda. Popularmente, no Nordeste brasileiro, dizem que se uma coruja rasga-mortalha pousar no telhado ou na sacada da casa de alguém e piar um som semelhante ao de um rasgo de seda, é sinal que alguém na residência falecerá muito logo.

** - Mulheres de mais de 30 anos, a quem se pagava para chorar nos funerais.




José Ailton Santos - Licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe [UFS], Pós-graduado pela faculdade Pio X em História do Brasil, graduando do curso de Administração de Empresas pela Universidade Tiradentes [UNIT], ex-professor efetivo da rede estadual de ensino do estado de Sergipe, funcionário efetivo do Banco do Estado de Sergipe com certificação pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais [ANBIMA], blogueiro, poeta de ocasião e portador da SPNDLR [Síndrome Patológica de Necessidade Diária de Leitura e Reflexão

quinta-feira, 21 de maio de 2020

NAMORO NAS ÁGUAS




Mal o Sol nasceu
e lá estava ela
para mais um dia de namoro
com o Chico¹.


Tocou a ponta do pé
nas águas que beijavam,
                                      - num frenesi ininterrupto -
a margem do Chico.


Ela veio com passos calmos,
como se desejasse sondá-lo,
como se desejasse se [re]conectar.
Acredito que buscava mesmo,
se energizar, entrar em sintonia...


Despiu-se, ali mesmo
- vagarosamente, sem pressa, sem ruído -
achatada entre a palidez da Caatinga² e o Chico.
As aves, os peixes, o espaço infinito e móvel...
a tudo assistiam: admirados e pasmos,
diante de tamanho primor.


O vento suave e fresco à beira rio,
sorrateiro veio acariciar sua cútis macia,
enquanto, paulatinamente, entrou nas águas
alguns passos adentro e submergiu no Chico;
submersa, bailava em acrobacias lascivas.


Eis que emerge
em meio as águas claras do Chico
e feito deidade olímpica,
expõe um sorriso faceiro e garrido:
queixo elevado,
lábios esticados ,
dentes alvos à mostra,
maçãs da face - arredondadas e polidas -,
olhos retesados em emanação de prazer.
Todo o ser reluzia.


O bailado das águas
pareciam aplaudir
radiante beleza.
Enquanto o Sol, agora desperto,
se diluia em cortejo e calor,
a beijar - incansavelmente -
aquele corpo delgado
aplainado na malemolência do Chico.


Eu, como por destino, ali estava,
camaleonicamente em meio a vegetação
e dentro da minh'alma [sem freios] eclodiu,
irremissivelmente uma voz plangente,
que me contorcia com ciúmes do Chico.

Ai de mim! Ai'mi!³







¹ - Alcunha popular atribuída ao Rio São Francisco ou Velho Chico, esse que é um dos mais importantes rios do Brasil e das Américas, também conhecido como rio da integração nacional, pelo fato de atravessar cinco estados do país, a saber, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

² - Substantivo feminino, que representa uma mata do nordeste brasileiro, onde a vegetação possui folhagem e é quase exclusivamente de espinhos, cactos e gravatás.

³ - Ai de mim! Ou Ai'mi! Uma espécie de gemido grego popularizado pelo ator, diretor e apresentador de TV, Antônio Abujamra, que apresentava um programa de entrevista na TV Cultura intitulado, Provocações, faleceu aos 82 anos, em abril de 2015.




José Ailton Santos - Licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe [UFS], Pós-graduado pela faculdade Pio X em História do Brasil, graduando do curso de Administração de Empresas pela Universidade Tiradentes [UNIT], ex-professor efetivo da rede estadual de ensino do estado de Sergipe, funcionário efetivo do Banco do Estado de Sergipe com certificação pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais [ANBIMA], blogueiro, poeta de ocasião e portador da SPNDLR [Síndrome Patológica de Necessidade Diária de Leitura e Reflexão]

terça-feira, 5 de maio de 2020

ADÃO, ONDE VOCÊ ESTÁ?


Javé Deus chamou o homem: "Onde você está?" Ele respondeu: "Ouvi teus passos no jardim e tive medo, porque estou nu, e me escondi". Javé Deus continuou: "E quem lhe mostrou que você está nu? Será que comeu da árvore da qual lhe proibi comer?¹ Guardem essa passagem no oxigênio, pois vamos nos ater a ela mais adiante. Vejamos, os textos bíblicos, via de regra, são lidos pelos olhos da fé, algo plausível e uma forma aceitável de leitura, contudo há outras perspectivas de leitura, podemos citar a filosófica, teológica, histórica, antropológica, entre outras cabíveis e plausíveis. Aqui, convido-os a seguir por uma abordagem pouco ortodoxa, pois tem como intento trazer à luz do entendimento uma leitura a contrapelo, dizendo de modo simples, digamos que seja uma leitura às avessas. Todavia não pretendo extirpar a abordagem de fé de nenhum dos leitores, mesmo porque entendo ser algo extremamente individual e não tenho por hábito dar pitaco na cor da tinta da casa de ninguém. E mesmo que minha abordagem possa soar conflitante com o entendimento de alguns leitores, não busco convertem ninguém a minha religião, e, antes que gritem, vou logo avisando que também tenho religião, ainda que seja associada ao verbo religare, não confundam com o verbo relegere*.

Sabido é que, cada indivíduo [homem ou mulher], grupo social e a sociedade em geral, constrói e é construída por uma visão de mundo que lhe é peculiar, digamos que seja o seguinte, Deus cria o homem e o homem cria deus na medida que condiciona sua existência a crença Nele. Questiono, se o homem não reconhecesse a existência de Deus, suponho que Sua soberania estaria comprometida, não acham? Ainda que a existência não esteja condicionada a essa circunstância. Esse entendimento é particular deste autor,não o atribuo a ninguém ainda que haja quem compartilhe. Caro leitor, lembra da passagem que pedi para guardar no oxigênio, hora de trazê-la de volta. Quando Deus pergunta onde Adão está, Ele questiona a localização de Adão? Acredito que não, senão não seria Deus [oni-tudo, ciência-saber = saber de tudo] a perguntar. Acredito que se refere a perdição de Adão, a perdição não no sentido religioso e sim psicológico ou mesmo da identidade. Adão desaparece no campo da existência, da identificação, ele desaparece de si mesmo. 

Ouvi certa vez de alguém, não me recordo de quem, que nós estamos onde está nosso pensamento, por analogia Adão não se fazia presente porque seus pensamentos não estavam com Deus, ele experienciava uma nova forma de existência que desconhecia totalmente. Calma, essas palavras não estão no texto bíblico, mas declaro a você que me questiona, que como o texto sagrado não é escrito com sentimentos, ideias ou crenças e sim por palavras, uso as minhas para dialogar com as palavras dos tradutores, e quantos foram: hebraico, grego, aramaico, latim, alemão, voltas e voltas de traduções, até chegarmos as nossas traduções portuguesas do presente. Fico a pensar, quais palavras foram usadas por esses idiomas matrizes para representar as palavras, Adão, jardim do Éden, serpente, fruto e tantas outras palavras simbólicas? O fato é que algumas dessas palavras foram traduzidas e chegaram até nós relevando um entendimento claro e dominante, como por exemplo, o jardim do Éden se tratar de um jardim de delícias, de um ambiente imaculado. A questão é, seria isso mesmo?

As diversas interpretações dos intérpretes traz consigo mudanças semânticas que revelam mudanças de pensamento, significado e entendimento no curso da história da humanidade. Vou fazer uma outra observação da passagem bíblica, quando Adão e Eva comem do fruto nem a condição [nus] nem a natureza humana [originários do pó] se alteram, o que se altera é o olhar, a perspectiva em relação a como se vêem. Todavia, essa mesma passagem é entendida como primeiro pecado, como algo ruim, de aspecto negativo, pergunto novamente, será mesmo isso que a passagem quer nos revelar?

Vejamos, vou levantar outra questão da passagem contida no livro do Gênesis, qual seja, a criação de Adão e Eva e a relação desses com Deus. Entendo que há três modelos de criação operadas por DEUS no livro da Gênesis, os inanimados, que são inorgânicos, sem vitalidade e movimentos, sem reações [premissa válida, são o que são independente de tempo e lugar], os animados, que são orgânicos e reativos [agem de modo a perpetuar a vida; nascem, crescem, reproduzem e morrem] e os intencionados [semelhantes ao criador] os quais aponto como sendo Adão e Eva, ou seja, seres iguais a nós, seres humanos. Acredito que, aqui, cabe uma comparação para ajudá-los a melhor entender o que digo, Deus seria uma espécie de artesão, que ensaia o feitio de suas criaturas e atinge o ápice à medida que pratica [não vejam como menção herética, é apenas uma analogia]. Desse modo, somos o que poderíamos afirmar, a obra magistral do criador. E como tudo que por Deus foi criado, somos misto de bons e maus impulsos, somos constituídos de extremos, de contradições e não há aparentemente como sermos diferentes.

Tudo que Deus criou fez polarizado, nada define melhor as criações divinas que os extremos, acredito inclusive que a santidade [busca infinita] seja se estabelecer em harmonia entre esses extremos, continuarei esse raciocínio adiante, antes vamos a alguns subsídios para melhor fortalecer o que afirmo no início do parágrafo. Suponhamos que tudo que não é mencionado no livro do Gênesis como sendo criado por Deus, Ele já tinha criado anteriormente, mesmo porque, se assim não fosse caberia uma discussão ainda mais vasta, que teria como direção a intrigante crença de que algo pudesse existir anterior a Deus ou que não tenha sido por Ele criado. Isso sim, seria um absurdo aos olhos da fé, mas ainda assim plausível. Vamos a um exemplo para clarificar o que disse anteriormente. ""E Deus disse: "Quero que haja luz!" E houve luz. E Deus viu que a luz era boa e separou a luz da escuridão. À luz Deus chamou "dia" e à escuridão "noite""²  Assim como Deus criou a luz em oposição à escuridão, também separou as águas abaixo e acima do firmamento [céu], fez surgir terra em meio às águas, astros para separar o dia da noite, frutos permitidos e frutos proibidos, criou Adão obediente e em seguida criou Eva, que viria a ser a impulsionadora da transgressão [doravante, peço que vejam Adão e Eva como metáforas]. E ao final de cada criação, vem o sentimento do criador, expressado na seguinte frase, e Deus viu que era bom.

Convido o leitor que aguentou as tormentas das águas até aqui para continuar navegando. Permita-se entender que Adão simboliza, na passagem do Gênesis, um estágio no processo de amadurecimento da natureza humana, um instante na escalada rumo a plenitude do ser, Eva simboliza um instante diferente, mais avançado da criação, não à toa no relato do Gênesis ela foi criada em momento mais avançado em relação à Adão. Aqui, iniciamos a fragmentação da metáfora mítica de Adão e Eva. O momento simbólico da obediência de Adão e Eva é representativo da infância da nossa natureza humana, da criança ingênua e sem malícia, de uma moral vigente e não contrariada. Já o instante do comer do fruto, da desobediência, revela um despertar, revela uma criança que se põe adulta, que se descobre com um corpo que ganha novos contornos e acessórios, com reações antes não conhecida nem experienciada, a moral antes não contrariada, nessa fase se apresenta em mutação. Uma vez atingida a idade adulta não há meios de retornar a infância, do mesmo modo que não há meios de Adão e Eva retornar ao jardim do Éden, nem voltar a comer do fruto, "Javé Deus o despachou do jardim de Éden, para cultivar o solo de onde tinha sido tirado. Expulsou o homem e, ao nascente do Jardim do Éden, colocou os querubins e a espada de fogo, para vigiar o caminho da árvore da vida [Gn 3, 23-24].

Deus põe no jardim [acréscimo da metáfora da natureza humana] frutos que podem ser comidos e frutos que não podem ser comidos, acredito ser simplista demais a crença que frutos foram ali colocados para não serem comidos, e, ainda por cima, apontado sua localização exata. Poderiam simplesmente não serem postos ali ou plantados fora do alcance dos mesmos, não julgam pertinente? Vejamos, há meios seguros de se deduzir que o comer do fruto proibido simboliza o amadurecimento, a ruptura com um arquétipo vigente [uma espécie de paradigma] que os dominavam, enquanto que o comer é representativo da resistência que gera o despertar. O arquétipo é uma forma de conhecimento inconsciente [adormecido], que se modifica à medida que adquirimos uma percepção diferente, assumindo manifestações diversas, motivadas pela conscientização individual onde o arquétipo de manifesta³.


Há de forma repetitiva e claramente manifesta que tudo criado por Deus se faz mediante a fala, exemplo, "e Deus disse", "faça-se"... a única coisa que não fez Deus pela fala foi o homem, no texto há um entendimento manifesto que o homem foi modelado, ou seja, há uma ação diferente em relação as demais criaturas, aqui reside a diferenciação dos três modelos de criação exposto no quinto parágrafo. Ressalto, que a fala tem uma única função, justificar e convencer, inclusive comunica ao mundo a razão de ser das coisas, podemos ainda afirmar que toda fala é um sussurro do orador para si mesmo. Notamos que o impulso ético está presente em toda extensão do tratado mítico da criação humana, inclusive, foi posto como elemento constituinte em Adão e é esse impulso que atua de modo magistral sobre os gostos e costumes, ousadamente afirmo, até os dias atuais.

A obediência em Adão produz a moral, a malícia presente na serpente, provoca a fratura, a intenção encarnada em Eva. Logo, Adão e Eva são representativos das diversas morais existentes, bem como da ruptura, do que Nilton Bonder** vai chamar de maldade ou mais especificamente, de segundas intenções. Ainda segundo o autor, Adão e Eva [que simbolicamente associo a nós humanos] representa uma espécie de encruzilhada entre quem realmente somos e quem gostaríamos de ser/parecer. Assim, como Adão, somos impostores que nos escondemos em uma identidade que nos conduz [feito rio que corre inexoravelmente para o mar] a crises e exílios em nós mesmos, esse momento é representativo da pergunta feita por Deus, "onde você está Adão?"

Ao revelar a Deus que se escondeu por se perceber nu, estabelece uma questão dialética, como saber se quando estamos acordados não estamos sonhando? A resposta para a pergunta é a lucidez presente na própria indagação, ao se perceber Adão se torna lúcido, se torna desperto. O entendimento distorcido para essa passagem nos relegou uma relação negativa e doentia com nosso corpo, com nossa nudez. Contudo, sou do entendimento que Deus não recomendaria sufocar nosso impulso libidinoso, que não está ligado apenas com a nudez, pois do contrário, se esse impulso fosse negado ou reprimido estaria pondo em risco à vida, à existência, a presença de Adão. Se assim fosse, Adão e Eva estariam sós no jardim e continuaria ou não até nossos dias, caso não amadurecessem, caso não atingissem a maturidade, caso não comessem do fruto não chegariam a fase adulta, não chegariam as segundas intenções, as malícias, não despertariam a líbido, não dariam seguimento ao mandamento máximo dado a matéria, "crescei e multiplicai-vos". 

Espero que ainda estejam de olhos [da mente] abertos, pois vou afirmar algo duro aos olhos da fé, no Gênesis não há espaço para um mundo sem maldade, malícia, segundas intenções, sem desobediência, pois Deus não concebe metades, seres incompletos, somente o todo e o todo é a junção dos extremos, da polarização, da luz e da escuridão, da terra e das águas...notem que ao final da sua obra "Deus concluiu o trabalho que havia feito, e no sétimo dia descansou de todo o trabalho que tinha feito. Deus abençoou e santificou o sétimo dia, pois nesse dia Deus descansou de todo trabalho que tinha feito como criador", se o trabalho foi concluído não havia nada mais a ser feito e sendo Deus Onipotente, tem o controle absoluto de tudo, logo, imaginar que construiu uma obra falha ou defeituosa poria sua condição suprema novamente em questão. O que não é o caso. Mesmo porque se Deus desejasse que Adão e Eva não progredissem os teriam interrompidos, não permitiria que prosperassem, seguissem adiante, se o faz é plausível acreditar que há motivação para tal feito. Não acham? Todavia, não o permite sem uma contrapartida, qual seja, uma punição, um castigo.

Pergunto ao leitor, já parou para pensar por um instante, porque somente a desobediência é reprovada em todas as sociedades e em todos os tempos, diferentemente do homicídio, da tortura, do abuso sexual? Caso tenha ficado curioso, aconselho fazer uma pesquisa sobre o que afirmei e vai perceber que em diversas sociedades e em diferentes momentos históricos, vigorou por muito tempo a tradição, que os jovens só se tornavam homens, quando tiravam a vida de outra pessoa; vão descobrir também que vários governos praticaram a tortura para extrair informações de pessoas suspeitas [sobre esse tema não precisam buscam em sociedades distantes], a própria igreja católica praticou por vários anos a tortura nas inquisições e por séculos o estupro foi praticado por homens em crianças, serviçais e esposas; vão descobrir também que a pederastia e o casamento entre homens velhos com crianças foi praticado de modo regular, todas essas formas de violências e abusos foram praticadas com anuência ou passividade das sociedades em questão, porém desafio o amigo leitor a apontar uma sociedade, uma apenas, isso mesmo basta uma, que tenha tolerado ou aturado de modo apático a desobediência. 

Quando falo da desobediência me refiro em todos os âmbitos e esferas sociais, seja ela dentro das famílias, empresas, partidos políticos, credos religiosos, seitas ou na sociedade como um todo. Estou certo, não vão encontrar. E caso encontrem vão perceber como foram severamente extirpadas. Exemplo clássico da desobediência é O Diabo, Satã, Lúcifer [cada sociedade pinta essa figura com as cores da convencionalidade religiosa***] ao menos nas sociedades ocidentais de matrizes cristãs.  Qual o erro de Lúcifer, desafiar desobedientemente o poder hegemônico Daquele que tudo ver, sabe e pode. Ao se rebelar, o rebelado passa a ser chamado, visto e sentido de outras formas e olhares, onde o bom é quem faz as regras [DEUS] e quem as descumprem é o mal [Satã].

Satã, o desobediente, influencia outros que são acometidos do mesmo fim, são expulsos, são excluídos, são despossuídos [mera semelhança com pretos, pobres e "viados"]. Na mitologia mítica, Satã convoca uma assembleia para discutir formas de reconquistar aquilo que foi perdido, devido sua desobediência. Entre os demônios [daimónion - gênio, podendo ser bom ou mau] há sugestões de vários estratagemas, até que a proposta de Belzebu [depois de Lúcifer o anjo mais nobre] logra vitoriosa, o que ela propõe, um ataque insidioso buscando corromper as novas criaturas divinas: os homens****. Por conseguinte, a assembleia aprova democraticamente a proposta de Belzebu e, na ausência de voluntários, Lúcifer assume a tarefa pessoalmente. A atuação de Lúcifer é associada nas interpretações moderna à figura da serpente "Ela disse à mulher: é verdade que Deus mandou que vocês não comessem de nenhuma árvore do jardim? A mulher respondeu... não devem comer nem tocar nela, senão vocês vão morrer" [Gn 3:1-4].

A passagem da assembleia dos demônios é representativa, pois contrasta com a decisão unilateral de Deus em nomear seu filho [essa discussão se estabelece no Novo Testamento] comandante supremo do Universo, enquanto Satã nada decide sozinho, ao contrário, procura reunir os demônios e democraticamente [a expressão democraticamente se apresenta apenas para expressar a reunião de muitos] traçam uma estratégia para deporem o poder dominante. Sei que essa reflexão última não é fácil de ser digerida, mas tentem ignorar o valor que essas figuras tem no universo das mentalidades religiosas e apenas como um exercício de reflexão, avaliem o poder que essa obediência valorizada [representativa do BEM] fixa nas pessoas, grupos sociais e na sociedade ao longo de interpretações e mais interpretações, sobrepondo os textos de origem em diversas camadas, e o peso simbólico que a desobediência [representativa do MAL] fixa nos corpos e mentes docilizadas ao longo de anos, séculos e milênios. 

A escolha do texto religioso para tratar do tema da totalidade do poder e das suas ramificações no imaginário foi uma escolha arriscada, sei disso perfeitamente, mas serviu para exercitar uma linha de raciocínio recorrente em mim, entendo que algumas dessas questões devem ser discutidas, pois elas podem resolver situações não resolvidas, resolvidas em parte ou, o que é pior, escondida do conhecimento geral. Com impacto direto nas sociedades do presente, por exemplo, nas questões de gênero, sexualidade, papéis domésticos de homens e mulheres, relações de trabalho e práticas de justiça social. Ao trazer à baila, ao entendimento, um conceito de Adão associado ao masculino e Eva como feminino, do mesmo modo outras questões que ainda são tabus em nossa sociedade, podemos estar induzindo um entendimento que mais revela o pensamento e concepção do intérprete, tradutor, que propriamente a intenção do autor primeiro dos escritos originários, contudo esse olhar "interpretativo" fechado, que castra outras perspectivas tem triunfado e se mantém até os nossos dias atuais. E o que me preocupa, é a possibilidade desse olhar dominante e gaudioso poder estar nos conduzindo a um entendimento errôneo, limitado ou distorcido do seres humanos e do mundo. Se de fato isso ocorre, bem como enquanto persistir, o prejuízo para nós "não crentes" é não podermos mais entender o seu real significado e sim o contrário.

Franz Kafka em sua obra, o processo, nos expõe de modo romantizado as cercas de arame farpados que castram a liberdade dos corpos, um retrato perfeito da coerção, da falta de privacidade, do aprisionamento das relações de poder, enquanto que outro autor, Yuval Noah Harari, em duas de suas obras; Sapiens: uma breve história da humanidade e Homo Deus: uma breve história do amanhã, revela uma forma mais atualizada de coerção, a coerção estabelecida através de cercas imaginárias, aprisionando não mais os corpos e sim as mentes, os comportamentos. As formas de opressão não se extinguiram, elas se tornaram mais complexas e sofisticadas. Se o leitor me acompanhou até esse momento, peço que respire fundo para um mergulho final, na China os agentes de segurança [policiais] usam "ingênuos" óculos de sol que fazem reconhecimento facial nas pessoas, imaginem que em milésimos de segundos são revelados inúmeras informações sobre os cidadãos; eleições foram e certamente continuarão sendo ganhas [temos exemplos nos EUA e BRASIL] com propagandas direcionadas para públicos específicos, revelando as preferências das pessoas , filtradas por ferramentas de inteligência artificial que fazem uso de conhecimentos da neurociência comportamental e biotecnologia para fornecer a propaganda refinada, com efeitos ainda mais nocivos. Portanto, se as cercas de Adão cerceavam as vontades, as de Kafka os corpos e as de Harari cercam os perfis comportamentais, dizendo de outro modo, cercam nossas mentes. Não é o fim do mundo ainda, mas estamos vivendo um cenário muito próximo do narrado por Aldous Huxley, em seu livro, Admirável mundo novo*****.




José Ailton Santos - Licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe [UFS], Pós-graduado pela faculdade Pio X em História do Brasil, graduando do curso de Administração de Empresas pela Universidade Tiradentes [UNIT], ex-professor efetivo da rede estadual de ensino do estado de Sergipe, funcionário efetivo do Banco do Estado de Sergipe com certificação pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais [ANBIMA], blogueiro, poeta de ocasião e portador da SPNDLR [Síndrome Patológica de Necessidade Diária de Leitura e Reflexão].



  

* Deixo a dúvida à título de curiosidade.
¹ Livro do Gênesis 3, 9-11.
² Livro do Gênesis 1, 3-5.
³ Carl Gustav Jung, psicanlista, em sua obra, os arquétipos e o inconsciente coletivo. 
** Nilton Bonder, rabino e escritor brasileiro, autor de vários livros, dentre eles, Segundas Intenções: vestindo o corpo moral.
*** José Roberto F. Nogueira, historiador, em sua obra, O diabo no Imaginário cristão.
**** Menção a obra Paraíso Perdido de John Milton.
***** Os autores e obras citadas no último parágrafo, peço desculpas ao amigo leitor, mas não vou conceder doses homeopáticas do conhecimento contido nas mesmas, busquem conhecê-las.