sábado, 5 de agosto de 2023

FILHO PRÓDIGO*




A escalada da montanha me distanciava:

de casa, pessoas e lugares conhecidos,

abandonei minha bússola e me permitir caminhar.


À medida que subia,

morava em várias casas-abrigos,

conhecia o  mundo [pessoas, lugares, doutrinas...].

E, aos poucos, um nevoeiro se formava,

apagando o ponto umbilical.


Por um tempo,

esqueci quem eu era,

esqueci meus direitos de herança

e continuei minha marcha rumo a subida.


Enfim, o topo da montanha.

Ali fiquei por um tempo,

apreciei o esplendor do cume,

imponente em relação à planície.


Não tardou e percebi o sequestro,

ignorei a serpente embaixo das flores.

Vi-me em restrição de mim.

Esqueci quem eu era, 

esqueci o meu lar:

amigos, familiares, lugares e significados.


Até que um dia, uma forte nevasca caiu sobre mim.

De modo análogo, um dia resolvi subir, agora, decido descer.

Tão logo iniciei o regresso, sentia que me aproximava mais de mim.


No retorno, parei nos mesmos lugares,

reencontrei as mesmas pessoas da subida.

Todavia, de repente, via face a face.

Tudo em volta pertencia àquela experiência,

fugaz, efêmero, transitório...

nada mais que isso.


Fui deitar e decidi que na manhã seguinte,

levantar-me-ia antes do crepúsculo matutino

-sem me despedir - 

seguiria montanha abaixo.


Não me apetecia a escassez de pão,

padecia de ingente necessidades,

ansiava por um alimento com todos os sabores.


À proporção que descia,

mais íntimo de mim ficava.

Mirei a planície e vi meu lar.


Ali, parado, hesitante, aos pés da montanha.

Mnemosine¹ veio ter comigo e ofereceu um copo d'água.

A glória da partida se mesclou com a desonra da volta,

a escuridão da noite que se foi, se dissipou sob a luz do dia nascente.


Solto do cativeiro, reencontrei comigo,

sob pena de duríssimas punições.


Rasguei minhas vestes, 

pus-me de joelhos

e toquei minha cabeça no chão.


O cheiro do pão, o abraço dos meus, 

a cama, a casa e colo de sempre.

Fora me restituído o direito de herança,

frente a frente encarava-me.


Adquirir as chaves, 

tudo passou a ser simbólico e identitário,

as grades e grilhões do cárcere se dissiparam,

fui devolvido a mim e provei da ambrosia².


* Texto inspirado no livro bíblico de Lucas 15:11-32; no mito grego de Ícaro, no livro de BLAVATSKY, H. P. A voz do Silêncio: e outros fragmentos escolhidos do Livro dos Preceitos Áureos; tradução de Fernando Pessoa. - 1. ed. - São Paulo: Mantra, 2020.; MELO, Pe. Fábio de. Quem me roubou de mim? - 1. ed. - São Paulo: Planeta, 2013. 216 p.; 23 cm. e em minha vivência.  

¹ - Mnemosine - Na mitologia grega é a deusa da memória, filha de Gaia [Terra] e de Urano [Céu]. Os mortos que bebessem água do seu poço conseguiam relembrar suas vidas.

² - Ambrosia - Significa algo divino, imortal. Segundo a mitologia grega era a bebida dos deuses do Olimpo, caso algum mortal bebesse passaria a ter o poder da imortalidade.