A escalada da montanha me distanciava:
de casa, pessoas e lugares conhecidos,
abandonei minha bússola e me permitir caminhar.
À medida que subia,
morava em várias casas-abrigos,
conhecia o mundo [pessoas, lugares, doutrinas...].
E, aos poucos, um nevoeiro se formava,
apagando o ponto umbilical.
Por um tempo,
esqueci quem eu era,
esqueci meus direitos de herança
e continuei minha marcha rumo a subida.
Enfim, o topo da montanha.
Ali fiquei por um tempo,
apreciei o esplendor do cume,
imponente em relação à planície.
Não tardou e percebi o sequestro,
ignorei a serpente embaixo das flores.
Vi-me em restrição de mim.
Esqueci quem eu era,
esqueci o meu lar:
amigos, familiares, lugares e significados.
Até que um dia, uma forte nevasca caiu sobre mim.
De modo análogo, um dia resolvi subir, agora, decido descer.
Tão logo iniciei o regresso, sentia que me aproximava mais de mim.
No retorno, parei nos mesmos lugares,
reencontrei as mesmas pessoas da subida.
Todavia, de repente, via face a face.
Tudo em volta pertencia àquela experiência,
fugaz, efêmero, transitório...
nada mais que isso.
Fui deitar e decidi que na manhã seguinte,
levantar-me-ia antes do crepúsculo matutino
-sem me despedir -
seguiria montanha abaixo.
Não me apetecia a escassez de pão,
padecia de ingente necessidades,
ansiava por um alimento com todos os sabores.
À proporção que descia,
mais íntimo de mim ficava.
Mirei a planície e vi meu lar.
Ali, parado, hesitante, aos pés da montanha.
Mnemosine¹ veio ter comigo e ofereceu um copo d'água.
A glória da partida se mesclou com a desonra da volta,
a escuridão da noite que se foi, se dissipou sob a luz do dia nascente.
Solto do cativeiro, reencontrei comigo,
sob pena de duríssimas punições.
Rasguei minhas vestes,
pus-me de joelhos
e toquei minha cabeça no chão.
O cheiro do pão, o abraço dos meus,
a cama, a casa e colo de sempre.
Fora me restituído o direito de herança,
frente a frente encarava-me.
Adquirir as chaves,
tudo passou a ser simbólico e identitário,
as grades e grilhões do cárcere se dissiparam,
fui devolvido a mim e provei da ambrosia².
* Texto inspirado no livro bíblico de Lucas 15:11-32; no mito grego de Ícaro, no livro de BLAVATSKY, H. P. A voz do Silêncio: e outros fragmentos escolhidos do Livro dos Preceitos Áureos; tradução de Fernando Pessoa. - 1. ed. - São Paulo: Mantra, 2020.; MELO, Pe. Fábio de. Quem me roubou de mim? - 1. ed. - São Paulo: Planeta, 2013. 216 p.; 23 cm. e em minha vivência.
¹ - Mnemosine - Na mitologia grega é a deusa da memória, filha de Gaia [Terra] e de Urano [Céu]. Os mortos que bebessem água do seu poço conseguiam relembrar suas vidas.
² - Ambrosia - Significa algo divino, imortal. Segundo a mitologia grega era a bebida dos deuses do Olimpo, caso algum mortal bebesse passaria a ter o poder da imortalidade.
